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Cidade do Rio Grande “Pequena Sereia… Pedaço de Mim…”

Nossa cidade do Rio Grande e suas múltiplas identidades são construídas com base nas experiências das pessoas, dos grupos, da cultura, das classes sociais, das estruturas econômicas, das religiosidades, das artes, ou seja, a partir de distintas origens e formas de expressão. Temos nossas peculiaridades históricas, influenciadas pela fronteira castelhana próxima, pelos costumes do pampa e pela nossa constituição marítima e portuária.

Datas exatas e “fatos” preconizados por “vultos” há muito tempo não mais são importantes para os historiadores, sendo tão somente referências que demarcam festividades, ainda que talvez importantes como marcos fundantes e pelo capital simbólico que possuem, ajudando-nos a dar “liga” de comunidade. Penso que menos nos importa se Cristóvão Pereira de Abreu ou Silva Paes foram os iniciadores da colonização portuguesa, interessando-nos mais os processos e estruturas históricas, os embates das forças sociais e econômicas e a Vila do Rio Grande de São Pedro, no contexto das disputas fronteiriças entre as potências europeias, que possuíam interesses geopolíticos há cerca de 300 anos.

Rio Grande são as lendas pesqueiras, as vielas, as casas forradas com latas de óleo, o lindo e muitas vezes invizibilizado imponente centro histórico. Somos pessoas do cotidiano, inúmeros artistas, músicos, trabalhadores, donas de casa. Rio Grande são os poetas, artistas visuais e plásticos que ajudam a dar liga identitária. Rio Grande é a imensa e abandonada caixa d´água da hidráulica, o pórtico de entrada em forma de máquina de costura – uma rememoração do período áureo do capitalismo têxtil do século XIX. Somos nossas tradições rurais e marítimas, permeadas no imaginário popular de lendas, contos e fé das tradições europeias e africanas que se mesclaram através da violência do sistema escravista e que resultaram em ritos e em dezenas de terreiros de umbanda e em um mesmo número de capelas católicas e, mais recentemente, de espaços neopentecostais.

Rio Grande, a cidade das benzedeiras, dos artesãos, dos ativistas e dos empreendedores sociais. “La ville” tão bem descrita por grandes poetas rio-grandinos, que nos presentearam com versos como “a pequena sereia, pedaço de mim”, de Luis Mauro Vianna, “das casas de lata e do porto maior”, de Sérgio Carvalho Pereira, do “corpo em flor e navios de partida…”, de Jesus Carrasco. A mesma cidade do injustiçado em vida, o “Poeta Pobre”, escritor maior dos bancos da Xavier Ferreira e dos botecos do entorno, do gigante Barão de Itararé, jornalista e cronista político de projeção nacional, de teor crítico e com humor ácido contra as elites políticas nacionais, da proto-feminista Carmen da Silva, também de projeção jornalística nacional. Não posso deixar de citar aqui Coriolano Benicio, grande ativista cultural dedicado às artes e cultura da região sul, atores sociais estes que em sua maioria nasceram em fins do século XIX e tiveram grande atuação até os anos 60, 70 e 80 do século XX.  Esses grandes artistas que comentei acima estão impregnados no imaginário papareia, nas nossas memórias, nos dão liga identitária.

“Euuuu camareuuuuuu, camareuuuu, eu camareuuuuu” …, quem na sua infância não cresceu ouvindo este grito nas ruas de nossos bairros anunciando o fim do período de defeso e o início das vendas do camarão, passando em nossas ruas acondicionado nas carroças em frente às nossas casas?

Rio Grande de São Pedro mas, também, do camarão do estuário, da maresia, da rústica orla do Cassino – Estação Siqueira. Cidade das vilas, das crianças dos anos 70, que jogavam bolinha de gude e bola na rua de areia com as traves feitas de chinelos (o “esporte” era batizado de “golinho pequeno”), de beber água da torneira do vizinho e de tomar banho de mangueira… de jogar pedra no valetão da rua 1º de maio, por onde passavam os trilhos…  Os mesmos trilhos por onde trafegavam os trens que nos acordavam cedo com o soar do apito, anunciando a aproximação da estação ferroviária que findava “confronte” o Salesiano(s). Uma época de transição quando a península ainda era tomada por imensas dunas, bosques e banhados, uma natureza ainda virgem não domesticada pela expansão demográfica, mas que aos poucos era ocupada por projetos habitacionais.

Rio Grande, “A” cidade nacional dos músicos e musicistas (merecemos este título), pelas inúmeras manifestações musicais, sonoras, rítmicas e poéticas e pelos músicos que aqui nasceram e trabalham e pelo igual número de músicos de projeção nacional e internacional (Heitor T.P. – Banda Simply Red; Ary Piassarollo – bandas de Gonzaguinha, Elis Regina, Tim Mais, Djavan etc; Jim Porto, um dos maiores músicos brasileiros em atividade na Europa e Itália; Alessandra Féris, pianista clássica radicada nos EUA etc etc etc.

Também a cidade dos imigrantes estrangeiros e migrantes internos, que se deslocavam em busca de emprego e estabilidade, a pequena “polis”, o simulacro “El Dourado” imaginado por famílias expulsas do latifúndio do pampa, e que também recebeu centenas de meninos de rua de outras localidades, acolhidas por pessoas generosas que lhes deram família. Rio Grande das contradições, uma zona de sacrifício, marcada por grandes investimentos têxtil, portuário, pesqueiro, industrial, naval, de imenso PIB, e ao mesmo tempo marcada pela concentração de renda e baixos índices de Desenvolvimento Humano, mas que ainda assim, conseguiu gerar pedras preciosas que são nossas exemplares escolas públicas municipais.

Somos um tecido social de culturas silenciadas que teimosamente se afirmam e organizam, pois não somos apenas portuguesa-açoriana, como se afirmou no imaginário local, mas profundamente africana (somos até hoje um gigantesco quilombo com centenas de terreiros), e que ao longo de sua história recebeu palestinos, libaneses, judeus, italianos, poloneses, alemães etc., que aqui estabeleceram raízes ou tão somente chegaram pelo nosso porto como ponto de passagem para outras localidades no país.

Nossa cidade viu o pioneirismo das lutas ambientais nos anos 70 com a AGAPAN e década de 80 com o CEA e NEMA, e da mesma forma a urbe gerou movimentos de rua, da extinta União Operária e sua agitação política e cultural, com as famosas passeatas e lutas operárias dos anos 50 do século passado – ainda muito presentes nas memórias locais –, e que fora aniquilada com o golpe de 64. A cidade da antiga estrada de ferro e suas estações de trem que foram responsáveis pela vinda de inúmeras famílias que se forjaram e se constituíram.

Rio Grande que secularmente possui suas praças com autofalantes, transeuntes, corre-corre da vida, ambulantes, espaços verdes de sociabilidade, que ao longo do século XX, foram sendo ilhados pelo crescimento urbano. Aqui se fala “visse?”, “merece…” (um mistério ao restante do país), ou a expressão “eu ‘vou’ me acordar …” (primeiro eu me acordo para depois me acordar ????) e temos a esquina da ventania dos quatro bancos, onde teimam o minuano e o nordestão em passar “só” por ali. A vila de São Pedro produz o “nosso” vinho do Porto, a jurupiga, e somos orgulhosamente cidade-mãe da FURG.

Em nossa Rio Grande, uma das nossas principais vias, a Marechal Floriano, é apenas denominada carinhosamente de “Marechal”.

Desafios são imensos para nós moradores, em especial, o aprimoramento do nosso sentido de pertença, a melhoria da vida de nosso povo mais vulnerável, o aumento da capa de proteção às minorias, a luta pela manutenção de nossos hospitais, o estabelecimento definitivo do turismo sustentável como uma política de desenvolvimento sólida, de longo prazo, para que não oscilemos aos ventos instáveis dos megaprojetos. Também precisamos avançar muito, mas muito, na acessibilidade arquitetônica das nossas ruas e calçadas.

Enfim, são 284 anos de história oficial mas, muito mais que isto, não podemos esquecer que somos nós, a população, a protagonista para a construção de uma cidade que seja, realmente, inclusiva e para todos.

Daniel Porciuncula Prado (Historiador Ambiental, Músico, Pró-Reitor de Extensão e Cultura da FURG)

Foto: Diego Balinhas

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