Idiomas de imigração mantêm viva cultura germânica há 200 anos no Brasil
Modos de comunicar preservados por descendentes têm reconhecida relevância cultural e podem ganhar espaço nas escolas do RS
Entre os idiomas germânicos trazidos ao Brasil por imigrantes, o hunsriqueano é considerado o mais falado. Apesar de contar com cerca de 2 milhões de falantes nativos no Sul do Brasil, não é o único que embarcou em navios há 200 anos e que se mantém vivo no cotidiano do Rio Grande do Sul. É comum encontrar em algumas regiões do Estado falantes do pomerano e do westfaliano, evidenciando que a diversidade étnica e cultural brasileira está, também, na fala do povo. Estudiosos do assunto e comunidades descendentes de imigrantes debatem a inclusão do ensino dos idiomas tradicionais de cada região, como os de origem germânica, nos currículos escolares.
As línguas de imigração alemã, ditas de casa ou da família, também chamadas de dialetos, ganharam contornos abrasileirados ao desembarcarem nas Américas. Eram modos de se comunicar, exclusivamente falados, praticados pelos imigrantes nas diferentes regiões de onde emigraram a partir de 1824 rumo ao Brasil. O professor de literatura e língua alemã da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Gerson Neumann, integra a Subcomissão Língua Alemã da Comissão Oficial do Bicentenário. Ele explicou que, no Rio Grande do Sul, se encontram três grandes grupos de falantes de idiomas de origem germânica: o hunsriqueano, o westfaliano e o pomerano.
Originário da região baixa do antigo reino germânico, o pomerano é mais presente na Região das Missões e Noroeste do Estado. O westfaliano é encontrado especialmente em municípios do Vale do Taquari. O hunsriqueano, comum nos vales do Sinos, do Caí, do Taquari e do Rio Pardo, é considerado o que reúne maior quantidade de características comuns com os outros idiomas de imigração germânicos e o mais praticado no Brasil.
Com expressiva influência na formação cultural gaúcha, os idiomas passaram a ser reconhecidos por municípios – como Westfália, que tem o westfaliano como língua co-oficial. A legislação do Rio Grande do Sul também declarou o hunsriqueano como patrimônio histórico e cultural do Estado, além de reconhecer as línguas e culturas locais como de relevante interesse cultural. Ainda, em reconhecimento aos idiomas de imigração, a Assembleia Legislativa gaúcha declarou 21 de fevereiro como o Dia Estadual da Língua Materna e das Línguas e Culturas Locais.
Coordenadora do Projeto Hunsrik Plat Taytx, de Santa Maria do Herval, e membro da Subcomissão Cidadania e Direitos Humanos da Comissão Oficial do Bicentenário, Solange Hamester Johann, é uma entusiasta do ensino, da valorização e da prática da língua germânica radicada no Brasil. Ela trabalha com o objetivo de que os descendentes de imigrantes continuem a usar o idioma falado e transmitam o conhecimento para os mais jovens. A educadora também busca difundir uma cultura escrita para o idioma. “A língua é fundamental para a transmissão do patrimônio cultural, oral e escrito”, ponderou. Ela destacou que o hunsriqueano tem cerca de 1500 anos de existência. “É a mãe de muitas línguas germânicas”, afirmou.
Por meio do projeto, Solange tem publicado materiais didáticos e obras, como O Pequeno Príncipe (Te kleene Prins), além de outros clássicos infantis. Em parceria com a Sociedade Bíblica do Brasil, publicou uma edição bilíngue do Novo Testamento. O projeto também foi responsável pela tradução e dublagem em hunsriqueano do filme Jesus. Com o trabalho de publicar obras no idioma materno, a educadora busca viabilizar o estudo e estimular o uso cotidiano do idioma.
O Projeto Hunsrik foi criado em 2004 pela pesquisadora alemã Ursula Wiesemann, por meio da Sociedade Internacional de Linguística (SIL). A iniciativa organizou o código de escrita utilizado nas publicações a partir do modo como ele é praticado na região de Santa Maria do Herval. O projeto registrou a língua no Ethnologue, órgão da Unesco que cataloga as línguas existentes no mundo.
Segundo Neumann, a partir de 1850 já existem registros de jornais, almanaques e livros em alemão padrão, além de alguns em pomerano e em hunsriqueano, produzidos no Rio Grande do Sul. O Museu da Comunicação Hipólito José da Costa (MuseCom), instituição vinculada à Secretaria da Cultura (Sedac), mantém acervo de publicações, jornais impressos e fotografias, que guardam essa memória.
O MuseCom prepara, para agosto deste ano, uma exposição desse acervo em homenagem ao bicentenário da imigração alemã. “São substratos de comunicação, a partir do registro fotográfico e da produção da imprensa, que remetem a uma produção local e aos primórdios tanto da mídia escrita quanto da fotografia aqui do Estado”, avaliou o diretor do museu, Welington Ricardo Machado da Silva.
Neumann defende que falar um idioma de imigração é um diferencial – inclusive para o aprendizado de outros idiomas – e pode abrir portas dentro e fora do país. Para incentivar a prática do hunsriqueano, em 2017, ele foi um dos organizadores do primeiro concurso de poemas e contos em hunsriqueano. O projeto gerou a publicação Hunsrückisch em prosa & verso (2018), reunindo os textos enviados de diversas partes do Brasil e do mundo, incluindo Estados Unidos e Alemanha. O e-book está disponível para download no link.
Outra pesquisadora que debate o tema, a coordenadora dos cursos de Alemão do Núcleo de Ensino de Línguas em Extensão (Nele/UFRGS), Karen Pupp Spinassé, trabalha para conscientizar sobre a importância do uso das línguas de imigração pelos jovens. “A gente vai nas escolas para mostrar para as crianças a questão da diversidade, conscientizando esses falantes jovens de que é legal falar o idioma de imigração em casa e que eles passem isso para as famílias”, explicou.
Karen destacou que esses idiomas são línguas brasileiras, desenvolvidas na interação entre as formas de falar dos imigrantes e o português. A pesquisadora defende que os idiomas de imigração promovem uma integração maior entre as comunidades locais e que o ensino e a prática devem ser compreendidos como uma questão social. “A iniciativa faz com que a língua conquiste aquele respeito de estar na escola, como um lugar de prestígio. Parece que a sociedade ainda precisa disso para poder valorizar essas línguas”, ponderou.
Diversidade linguística no Rio Grande do Sul
De acordo com o Inventário Nacional de Diversidade Linguística, mais de 210 idiomas são praticados no país, a grande maioria (180) de origem indígena. O inventário documenta 30 que são falados por comunidades de imigrantes. O trabalho do inventário é coordenado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), mas a valorização dessa diversidade é uma realidade relativamente recente.
Os imigrantes germânicos foram submetidos a políticas governamentais de segregação linguística na Era Getúlio Vargas (1930 a 1945; e 1951 a 1954), quando foi proibido o uso dos idiomas germânicos no cotidiano das comunidades. “Tratava-se de um projeto educacional nacionalista, que tinha por objetivo fortalecer a identidade nacional”, informou o pesquisador e professor da Universidade Federal do Espírito Santo, Erineu Foerste, em artigo publicado pelo Iphan.
A Sedac mantém em seu Sistema Estadual de Cultura (SEC) o Colegiado Setorial de Diversidade Linguística, coordenado por Alvaro Benevenuto Jr. Ele afirmou que o colegiado é um diferencial do SEC gaúcho. “O Rio Grande do Sul é o único Estado que tem como um dos institutos o Colegiado Setorial da Diversidade Linguística”. Os demais estados, segundo ele, tratam do segmento como patrimônio imaterial. “Isso revela como é frequente e relevante a diversidade linguística para a nossa vida gaúcha”, ressaltou Benevenuto.
O pesquisador destacou o caráter multicultural das diferentes influências presentes na miscigenação linguística que caracteriza a ocupação do território gaúcho. “Daí a importância disso estar nos currículos, tanto do Ensino Fundamental quanto do Ensino Médio, que são as bases da formação da cultura gaúcha”, explicou Benevenuto.
Ascom Sedac RS
Foto: Arquivo MuseCom
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